BENFICA 2 – AROUCA 2 

O domingo em que

o Eusébio foi dos nossos

Nós éramos os do relato, sentadiços. Os outros corriam os futebóis ao vivo, arrumando  tácticas. Enquanto nós, dispensávamos suores. Os domingos passavam, como se fossem fracturas no quotidiano. Os outros, logo pela manhã, perseguiam o domingo caçando glórias. Ao cair da noite, o mesmo domingo os devolvia, normalmente vindos de beiça caída, a Arouca. Nós ficávamos na tasca do Ilídio, ouvidos trincando fadunchos, acompanhados de relatos da bola e, normalmente, com a beiça nos penalty’s de vinho.

Nosso futebol era ali, na mesa de matraquilhos do Sindicato. A mesa de jogo dormia nos arrecuamentos da casa, ao dispor da tosca lâmpada que tombava do tecto. Era tão velha que nenhum cuspo escorregava oleosidade nos bonecos. Nos bonecos havia também os outros e nós. Os outros, eram os que jogavam sempre com as cores benfiquistas. Nós – eu e o Luís Terní – jogávamos sempre contra o Benfica. O meu parceiro, portista de gema, sofria de anti-benfiquismo. Aqueles matrecos tinham tanta ferrugem que eu os chamava de matrecorrugens.

Era ali que vibravam as nossas multidões quando a pequena bola de madeira escorrecaía no buraco da baliza. Nós, de repente sem idade e com as simpatias clubísticas todas à mistura, frequentávamos o imaginário relvado dos outros. Nesse domingo, os outros já houveram partido, de fato de treino e bandeiras da terra, para o Estádio da Luz. Isso era lá longe, na fronteira dos mundos, subúrbio dos subúrbios de Lisboa, cujas vistas se prestavam a um inédito Benfica-Arouca para o campeonato nacional.

Para nós, ao domingo bastava-nos ser domingueiros. As vistas de um domingueiro cingia-se na sua própria roupa. Ganhávamos nossa melhor toilette: camisa engomada, calça vincada, casaco tweed, sapatinho de ir ao pito, gravata à maneira e, para dar um ar nas vistas aos outros, Sindicato com ele.

Nossas mulheres não suportavam que parássemos muito pelos lados da taberna. Só por causa do cheiro e das nódoas que, na roupa, pudéssemos levar para elas. Os receios delas careciam de algum fundamento. Nós só agarrávamos os matrecos depois de nos desequipar. Lá fora, penduricalhadas no bengaleiro, os casacos e as gravatas ficavam a espreitar-nos.

Mas a brincadeira dos matraquilhos custava cada vez mais preço. Cada jogo, cada aposta. E a aposta era uma rodada geral de verde a pagar pela equipa derrotada. E o mata-bicho colectivo não saía barato.

A moedinha abria o momento mágico. A gente metia na ranhura e a máquina expelia suas cinco bolinhas, já tão gastas que coxeavam em cada volta de seus épicos percursos.

Foi quando se deram os casos chamados para a estória desse domingo. Os primeiros a chegar, os outros, os lampiões, acharam graça: enquanto o Ferrinho distraía a assistência com uma versão d’Os Teus Olhos Castanhos, a equipa dos lagartos apareceu transcolorida no amarelo e azul do F. C. Arouca. A dupla benfiquista fez riso, encontrando-lhe piada, e anedotaram. Distribuíram nomes das velhas glórias arouquenses pelo trio atacante adversário – Betinha, Rogério, Luís Ternú.

Depois, entoando Ferrinho o hino dos mineiros, de repente qual Santa Bárbara, o avançado centro da minha equipa – Rogério – tinha sido substituído e mudado de raça. Nós, eu e o Luís Ternú, também fizemos riso e alcunhámos o novo matraquilho de Eusébio.

Só Ilídio é que ventilou ameaças: se descubro o sacana do pintor, ai de quem!

Seja lá quem era o autor, nesse domingo a mesa entardeceu com um novo derby, um Benfica-Arouca. Numa tasca portuguesa, bem lusitana de nome e propriedade, figuravam os primeiros matraquilhos do mundo com as cores arouquenses.

A minha equipa começou a perder bem cedinho. Mal agarráramos os ferros e os encarnadiços já nos tinham enfiado dois golos sem resposta. Nós parecíamos espectadores, olhando as gotinhas de tinta fresca, rebrilhando nas botas dos nossos bonequinhos.

Até que surgiu o génio futebolístico do meu parceiro. Na frente de ataque, Luís Ternú com o seu próprio boneco, segura finalmente a terceira bola de jogo. Ensaia a finta pela esquerda, mas a defesa benfiquista mantém-se fechada. Aí, Luís Ternú endereça a bola a Betinha. Este procura novo ângulo de remate, mas não tem melhor sorte. Decide então passar a xinxa para o meio, onde Eusébio após duas chicuelinas, desvia-se para a sua direita e, chutando com os dois pés, faz bater com estrondo a bola no fundo da baliza adversária. Nesse momento, até o Ferrinho se cala. A clientela cerca-se da mesa, enquanto alguém exclama no meio do silêncio geral: “Temos jogo!” A dupla benfiquista chega-se mais aos matraquilhos e, ainda rindo, trocaram suas admirações.

Logo salta a quarta bola. Por obra do acaso, ela escorricha outra vez para Eusébio. Luís Ternú ganha confiança, vira o boneco ao contrário, fazendo-o dominar o esférico pela cara preta. Durante uns instantes, a bola desliza. Ora para lá, ora para cá. A defesa e o guarda-redes contrários na rabia. Parecem tremer. Desorientam-se. Às páginas tantas, enervam-se mesmo, cada um para seu lado. Então, Luís Ternú, sorriso nos lábios, vira outra vez Eusébio que empurra a bola entre os bonecos, fazendo-a entrar em jeito de cagadinha na baliza, e empata o jogo.

Foi a apoteose. A invencível armada benfiquista arriscava-se a perder o jogo na negra. A plateia bate palmas, rejubilando. Mas, agora, os benfiquistas já não riam. Ao inverso, havia uma raiva que multicrescia. De repente, dá entrada no Sindicato o Rogério, que se dá de berrar salivando raivas. A clientela tentava de acalmar-lhe as fúrias. Mas nada, o homem se atestara de ódios e de protestos:  mas que boneco é esse que está a jogar no meu lugar?

Súbito, vai ao bengaleiro, onde continuam os casacos e as gravatas, e saca um guarda-chuva.

Em volta fechou-se o silêncio, solene. Parecia cinema, o Luís Ternú olhava de espanto cheio: aquilo já não era o Sindicato, era o saloon. E o Rogério acenando o guarda-chuva era o Clint Eastwood, o Rambo dos tempos. Quem sabe foi por causa desse estado de maravilhação que o meu parceiro não ouviu gritarem quando o furioso do Rogério apontou sobre o avançado de centro da minha equipa. A cacetada voou e o pequeno boneco esvoou, salpicando estilhaços, mais súbitos que o sangue.

O jogo morreu logo ali. No fim, sobrara um dois a dois. Naquele domingo, as contas foram à moda do Porto, cada um pagou o seu.

 Hoje, dia em que Eusébio nos disse adeus, aquele cacetão continua ressoando na minha vida, junto com esse outro grito que, por engano de um relâmpago, me pareceu sair do bonequinho alvejado.

Seja como for, desta verdade podem os arouquenses gabar-se – nem que fosse por um só domingo, nem que fosse num simples jogo de matraquilhos – o Eusébio também já foi dos nossos!

 

6 Janeiro de 2014 

Álvaro Couto